29 de dezembro de 2013

Convidado especial

Abriu-se cá em casa uma garrafa de vinho do Porto Kopke, comemorativa da coroação de Eduardo VII e Jorge V. Não estou segura do ano em que este vinho foi lançado. O selo estava ilegível. A coroação de Eduardo VII ocorreu em 1902, a de Jorge V em 1911. Várias são as hipóteses e aceitam-se quaisquer informações relativas a esse «mistério». Certo é, apesar das operações necessárias para que o estado da rolha não afectasse o conteúdo da garrafa, que o vinho é preciosíssimo. Profundamente aromático, incorpora notas igualmente profundas de frutos secos, sobretudo nozes. Uma maravilha. Por isso, é com ele que brindamos a todos os nossos amigos.

Ao longo do curso do rio Douro e dos seus afluentes ergue-se uma civilização vitícola, apurada, séculos a fio, por uma vontade persistente só possuída pelos que enfrentam grandes obstáculos. Arrancado, pela força e engenho humanos, aos fundos vales do Douro, o complexo vitivinícola alto-duriense evidencia-se por um património paisagístico, indissociável da sua gente, da sua história, da sua economia e da sua cultura, isto é, uma paisagem construída a meias entre a natureza e o homem com o fito de produzir o vinho, que é, com o azeite, um dos produtos de civilização mais antigos. Assim, a ancestralidade do ciclo do vinho, dos trabalhos preliminares ao consumo dos néctares, no que tem de repetição do gesto primitivo, a par de uma constante evolução de processos e técnicas, adquire um valor cultural permanente, que decerto participa também da identidade nacional.
Obra de séculos, a paisagem vitícola dos vales do Douro tomou forma ao longo das encostas alcantiladas e cheias de pedra («Cá de baixo, por vezes, dir-se-iam altos paredões levantados para o céu, muralhas inexpugnáveis de fantásticas fortalezas» observaria Manuel Mendes em Roteiro Sentimental. Douro), duramente trabalhadas, enquanto se desenvolviam e aperfeiçoavam as técnicas de organização dos terrenos, de preparação dos solos, de cultivo da vinha e da produção de vinho. Mas a produção implica o consumo, e este o comércio. O Porto, na foz do Douro, foi o grande aglomerado urbano que naturalmente se tornara o principal centro de consumo. O tráfego fluvial adquiria autonomia e características muito particulares como actividade ao serviço do transporte dos produtos, nomeadamente do vinho, que a cidade portuária fazia depois circular nos mercados europeus. A jusante, floresceu uma intensa actividade comercial, só possível devido à grande qualidade desse vinho que, pelo menos desde o século XVII, começava a ser conhecido como «do Porto».
Assim, o grande rio, turvo e luminoso, bravo e doce, vagaroso e rápido, atravessa os vales profundos deixando profundas e indeléveis marcas à sua passagem. Miguel Torga descreve-o dramaticamente como só um trasmontano o poderia fazer, e como só um escritor intimamente ligado à terra o saberia dizer: «Começa em Miranda e acaba na Foz, este calvário. Começa em pedra e água, e acaba em pedra e água. Como nos pesadelos, não há nenhum intervalo para descansar. Entra-se e sai-se do transe em plena angústia. (...) Doiro, rio e região, é certamente a realidade mais séria que temos. Nenhum outro caudal nosso corre em leito mais duro, encontra obstáculos mais encarniçados, peleja mais arduamente em todo o caminho; (...) Patético, o estreito território de angústia, cingido à sua artéria de irrigação, atravessa o país de lado a lado. E é, no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo.»
Implantar a vinha pelas encostas íngremes e custosas não foi tarefa fácil. Diz-se no precioso e fundamental documento de apresentação da candidatura do Alto Douro Vinhateiro a património mundial: «Como em todas as regiões vinícolas de montanha, no vale do Douro foi necessário encontrar soluções para implantar a vinha nas zonas de encostas íngremes. Após a obra do rio, o trabalho do homem que transformou as montanhas xistosas da era Câmbrica e Pré-Câmbrica em terra e muros representa o esforço colectivo de várias culturas: um trabalho de toda uma vida, uma verdadeira epopeia humana!» 
Jorge Colaço, «Alto Douro Vinhateiro» (excertos), em João Paulo Sacadura/Rui Cunha, Património da Humanidade em Portugal, volume III, Verbo, 2006 (edição distribuída com publicações da Cofina Media).

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