5 de outubro de 2014

Crónicas com Sabor



Um livro raramente faz um Autor. A consagração de um Autor – que não seja um desses abundantes produtos inventados nos departamentos de marketing – leva o seu tempo e requer denodada persistência.
O talento, de que o entusiamo e a energia criativa participam, exige uma abundante dosagem de vontade e entrega até ganhar coerência e consistência. E só verdadeiramente se revela ao longo de uma obra continuamente arrancada de dentro de si própria, como se de um novelo se tratasse.
Sabores com Histórias é o mais recente título da vasta bibliografia gastronómica de Maria de Lourdes Modesto. A sua obra, que obrigatoriamente inclui, além dos muitos livros publicados, os profícuos anos de comunicação televisiva e a profunda influência – e essa talvez seja uma história ainda por fazer – no modo de os portugueses, mesmo os profissionais da cozinha, se relacionarem com a gastronomia do seu país.
Sabemos que um país também se define pela sua gastronomia. Nela se reflectem os vários aspectos da sua tradição agrícola e nela se exprimem os matizes do gosto colectivo que definem modos de viver e de conviver; nela se imprimem singularidades geográficas, tonalidades climáticas; nela se incorpora a História; nela vive o espírito do lugar.
A obra de Maria de Lourdes Modesto, neste sentido lato, tomou sobre si, ao longo do tempo, por mais fortuito que o início desse processo tenha sido, o encargo de impedir que a identidade gastronómica nacional se perdesse nas brumas do esquecimento e do descaso, através da identificação e contextualização de práticas culinárias e respectiva fixação dos processos genuínos de confecção.
A cozinha tradicional não é, porém, um processo definitivamente encerrado. Esse grande trabalho de recolha e de fixação ficou substancialmente enriquecido com a conjugação de critérios de rigor e de abertura, com a combinação de sensibilidade e visão, com a articulação inteligente entre o conhecimento das cozinhas regionais e o cosmopolitismo das grandes cozinhas internacionais, e ao enquadrar tudo isso numa perspectiva integrada da alimentação, como factor de prazer, de saúde e de cultura.
É a conjugação desta multiplicidade de factores que faz de Maria de Lourdes Modesto uma das principais figuras portuguesas da gastronomia e da culinária. Não espanta, por isso, que um novo livro seu seja sempre um acontecimento. No caso presente, Sabores com Histórias é um livro que reúne algumas dezenas de crónicas jornalísticas.
Por um lado, a crónica não é um género fácil. Exige concisão da matéria informativa que a constitui e dela deve emergir a personalidade do seu Autor, na sua radical, mas supremamente informada, subjectividade. Por outro lado, nem sempre a crónica sobrevive à passagem do tempo, por demasiado agarrada ao momento e à circunstância da sua publicação jornalística.
As crónicas de Maria de Lourdes Modesto ultrapassam com grande elegância essas dificuldades. Em primeiro lugar, porque o seu estilo chega a ser lapidar, sem se eximir à digressão ou à anecdote (as tais histórias que se desfiam a propósito dos sabores). Depois, porque sabe perfeitamente onde quer chegar com cada uma delas. A seguir, porque elas sabem dialogar com o leitor, convocando-o, associando-o, tornando-o cúmplice do seu raciocínio, da sua argumentação, das suas ironias, por vezes afiadas, mas sempre cordiais. E, por fim, porque a sua escrita – a riqueza do seu vocabulário e o uso de uma sintaxe que não se conforma aos redutores ditames dos processadores de texto – é uma escrita saborosa (e não apenas «peculiar» como já vi escrito). É, em duplo sentido, um livro de crónicas com sabor, e este não está apenas nos alimentos de que fala.
E como a Autora bem sublinha na Introdução, este Sabores com Histórias é sem dúvida de um livro de crónicas e não mais um livro de receitas: dos tais que os departamentos de marketing laboriosa e abundantemente inventam a toda a hora. As receitas são aqui um complemento dos textos sobre alimentos, pratos e preceitos de confecção, que cumpre sem dúvida uma função importante na aliança com os leitores – por isso Maria de Lourdes Modesto nos diz que é um livro que se lê no comboio, mas não se abandona: «que se guarda porque se poder levar para a cozinha, que é afinal o nosso comum e afectivo lugar de encontro».
NotaO livro Sabores com Histórias, de Maria de Lourdes Modesto, acaba de ser publicado pela Oficina do Livro, numa bonita edição cartonada, com 272 páginas, e excelentes ilustrações de João Pedro Cochofel.
Jorge Colaço