8 de agosto de 2013

A minha vizinha de cima* – crónicas 7


A minha vizinha de cima tem uma expressão peculiar (olhos abertos, como que repuxados pelas sobrancelhas alçadas em arco) e um gesto que a acompanha (o antebraço formando um ângulo apertado e a mão – direita – oblíqua de palma bem virada para cima). A fisionomia e o gesto são sublinhados pelo movimento de afundar o pescoço entre os ombros e a sequência termina com um pequeno ajustamento dos óculos sobre o nariz.

A expressão, gesto e movimento exprimem inevitabilidade e inocência («não posso fazer nada» ou «o que poderia eu fazer mais?») ou clarividência («eu não disse?»). O reencaixe dos óculos simboliza uma visão racional e lógica.

Os filhos e o marido estão familiarizados com a gama de significados que tal expressão enfatiza e sabem que, a partir daí, não vale a pena dizerem mais nada. Se insistirem, as sobrancelhas erguer-se-ão ainda mais, o pescoço afundar-se-á mais profundamente, e a mão, oblíqua e de palma bem virada para cima, ganhará um veemente movimento laminar. A voz enriquecer-se-á de atonalidades.

Os filhos há muito que desistiram. Sobretudo quando a conversa entra na política. Aí, o «eu» dilui-se e desagua no «eles»: «não podem/puderam/poderiam fazer nada» (e aqui o seu coração, treinado para se orientar para os sinais de riqueza e poder, ainda pende sobretudo para o socialismo socrático). E, claro, agora, cada vez que tem de lhes negar alguma extravagância, solta um «eu bem disse que isto ia acontecer, não posso fazer nada». Que é aliás o discurso do governo de que ela não gosta.

O marido, esse, sabe que pouco lhe resta a fazer. 




Jorge Colaço
(convidado deste blog)

* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência. 

1 comentário:

  1. Olá! Precisava do seu contacto telefónico (com urgência) por causa prémio do passatempo do Bacalhau Dias. Pode enviar-me por msg ou mail?
    Beijinhos!

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