A minha vizinha de
cima gosta que a vejam e tratem como uma Senhora. Péla-se por ser lambida pela
linguagem catita do homem da mercearia, agora minimercado fluorescente, que
articula com solene clareza «senhora dona» em vez do breve «sôdona» reservado
às velhas da vizinhança. Reage com um saracoteio de gata velha à lisonja de uma
pequena vénia à sua passagem, mas responde com frieza ao desdobrar do
cumprimento.
Gosta de inspirar
respeitinho. E o respeitinho é, como se sabe, uma coisa que se manifesta de
baixo para cima.
Do cimo da sua
pirâmide privativa foi construindo a sua imagem de Senhora de respeito, passivamente
manifestada — mona lisa inquieta — num sorriso sonso e na fuga do olhar para um
ponto para além da orelha direita do interlocutor, e que encontra o seu lado
activo no exercício, igualmente estrábico, de sublinhar que o seu é um olhar
descendente, mas não condescendente.
Por exemplo, se lhe
contam um infortúnio, responde: «isso, comparado com o que me aconteceu…»; se
lhe relatam um caso de fortuna, responde com idêntica réstia de desdém: «isso é
que foi sorte, mas se fosse eu tinha era muito cuidado…»; se lhe inculcam a dramaturgia
de alguma desfeita, rosna: «isso comigo fiaria muito mais fino…».
Se lhe perguntam se,
por acaso, não viu aqui há dias…, reage empinando o rosto com altivez,
dissimulando o rubor: «não sou mulher de janela».
Se lhe confidenciam
um caso picante, empina o rosto ruborizado, simulando altivez: «Comprei
cortinas novas, tenho bainhas para fazer, calhas para fixar, sanefas para pôr, vidros
para lavar, marido para atender».
Jorge Colaço
(convidado deste blog)
* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência.
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