26 de março de 2013

Escrito no éter – Crónica de Maria de Lourdes Modesto


Os comeres da minha infância

Ao relembrar o que me manteve a vida até à idade dos cabelos de prata, receio provocar nalguns leitores inesperadas mas saudáveis lágrimas. Digo saudáveis por provirem de recordações que envolvem sentimentos, carinhos e boas lembranças que a nossa memória, por mais fragilizada que se encontre, não apaga.

Quem não se lembra dos sabores e dos cheiros da sua infância? Aquele cheiro tão especial que inundava a casa no dia de fazer a sempre oportuna marmelada? E o do ferro de engomar a queimar o mais suave leite-creme? Do cheiro da canela que bordava amorosamente o arroz doce, com ovos ou sem eles, cremoso para uns e seco para outros. Dos biscoitos de azeite, do chiar das azevias de grão a enfolar e alourar na frigideira de ferro? E o bolo de mel e azeite, crescendo, crescendo até empurrar a porta do forno? E a gemada com vinho abafado, preparada com tanto amor e convicção nas épocas de exames?

Quem de nós, alentejanos, esqueceu o travo do vinagre que em parceria com o coentro tornava a sopa de cação inolvidável. Quem poderá esquecer o murmurar das filhós, dos sonhos e dos brióis a ferver no azeite? E as sopas? A canja quente, remédio e consolo de sarampos, varicelas e outras pequenas moléstias? Só quem nunca provou a sopa de beldroegas com os queijinhos frescos de ovelha refastelados nas sopas do magnífico pão alentejano e adubada com o suave e doce azeite transtagano, não morre de saudades por ela! Quem não experimentou a experiência sensorial de esmagar na boca o generoso e adocicado grão na companhia de espinafres ou beldroegas sabiamente doseados?

Quando se fala em arte, referem-se a pintura, a escultura a música, mas jamais a culinária. Que outra arte faz tanto apelo aos cinco sentidos e ao bom gosto? E que dizer desse prodígio de imaginação que é a Açorda, a que teimam em chamar “sopa alentejana”.
Mas isso não é o mais importante nas minhas lembranças gastronómicas. O que mais conta, foi desde muito cedo ter conhecido os cheiros e os sabores de uma das melhores cozinhas portuguesas, a alentejana.

(convidada deste blog)


Fotografia que ilustra a página 229 (sopa de beldroegas) da primeira edição da Cozinha Tradicional Portuguesa, com fotografias de Augusto Cabrita e Homem Cardoso.




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