Os comeres da minha
infância
Ao relembrar o que me
manteve a vida até à idade dos cabelos de prata, receio provocar nalguns
leitores inesperadas mas saudáveis lágrimas. Digo saudáveis por provirem de recordações
que envolvem sentimentos, carinhos e boas lembranças que a nossa memória, por
mais fragilizada que se encontre, não apaga.
Quem não se lembra
dos sabores e dos cheiros da sua infância? Aquele cheiro tão especial que inundava a casa no dia de fazer a sempre oportuna
marmelada? E o do ferro de engomar a queimar o mais suave leite-creme? Do
cheiro da canela que bordava amorosamente o arroz doce, com ovos ou sem eles,
cremoso para uns e seco para outros. Dos biscoitos de azeite, do chiar das azevias
de grão a enfolar e alourar na frigideira de ferro? E o bolo de mel e azeite,
crescendo, crescendo até empurrar a porta do forno? E a gemada com vinho
abafado, preparada com tanto amor e convicção nas épocas de exames?
Quem de nós,
alentejanos, esqueceu o travo do vinagre que em parceria com o coentro tornava
a sopa de cação inolvidável. Quem poderá esquecer o murmurar das filhós, dos
sonhos e dos brióis a ferver no azeite? E as sopas? A canja quente, remédio e
consolo de sarampos, varicelas e outras pequenas moléstias? Só quem nunca
provou a sopa de beldroegas com os queijinhos frescos de ovelha refastelados
nas sopas do magnífico pão alentejano e adubada com o suave e doce azeite
transtagano, não morre de saudades por ela! Quem não experimentou a experiência
sensorial de esmagar na boca o generoso e adocicado grão na companhia de
espinafres ou beldroegas sabiamente doseados?
Quando se fala em
arte, referem-se a pintura, a escultura a música, mas jamais a culinária. Que
outra arte faz tanto apelo aos cinco sentidos e ao bom gosto? E que dizer desse
prodígio de imaginação que é a Açorda, a que teimam em chamar “sopa alentejana”.
Mas isso não é o mais
importante nas minhas lembranças gastronómicas. O que mais conta, foi desde
muito cedo ter conhecido os cheiros e os sabores de uma das melhores cozinhas portuguesas,
a alentejana.
Fotografia que ilustra a página 229 (sopa de beldroegas) da primeira edição da Cozinha Tradicional Portuguesa, com fotografias de Augusto Cabrita e Homem Cardoso.
(convidada deste blog)
Fotografia que ilustra a página 229 (sopa de beldroegas) da primeira edição da Cozinha Tradicional Portuguesa, com fotografias de Augusto Cabrita e Homem Cardoso.
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