5 de março de 2013

A minha vizinha de cima* - crónicas 2


A minha vizinha de cima tem, ao contrário da maior parte das mulheres que conheço, uma paixão por engomar.

Gosta do cheiro quente que a roupa exala ao ser engomada, das golfadas de vapor. Gosta sobretudo de ver como a força aplicada quase sem esforço sobre o ferro de engomar, nave desconhecida envolta em fumo, se traduz no mágico alisar das rugas e pregas da roupa metodicamente dobrada depois de lavada e seca.

O ferro de engomar é, para ela, uma espécie de prolongamento do braço, uma prótese que lhe permite chegar às mais recônditas e difíceis costuras. Domina a técnica, conhece todos os matizes da regulação da temperatura e da utilização do vapor.

Metódica, minuciosa, perfeccionista, é no vinco que mais se compraz. A compressão da dobra, a marcação do limite, a firmeza do ataque, a leveza da insistência, da suave repetição, são movimentos que a enchem de indescritível e inconfessável prazer.

Depois disso, senta-se languidamente, cansada mas satisfeita, sentindo-se flutuar. E é então que sonha. Mas todos os seus sonhos são imperativamente interrompidos por todas aquelas coisas desagradáveis que tem de fazer até a próxima máquina de roupa secar.



Jorge Colaço
(convidado deste blog)

* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência.

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